QUE PAÍS É ESSE? ESPECIALISTA ANALISA ATUAL SITUAÇÃO DO BRASIL

Professor de Ciência Política da Universidade Feevale fala sobre o sentimento de incerteza e falta de esperança do brasileiro

Nas rodas de conversas dos mais diversos grupos, a conversa tende a chegar no mesmo ponto: a crise moral, política e econômica pela qual o Brasil passa. E logo chega-se a queixas, histórias de desemprego e incertezas. Diante da possibilidade do impeachment da presidente Dilma Roussef, da incredulidade nos políticos e da falta de dinheiro, o brasileiro sente-se desamparado. Para entender um pouco mais desse contexto e saber o que acontece de fato com nosso País, conversamos com o professor de Ciência Política Henrique Keske, da Universidade Feevale, de Novo Hamburgo (RS), que também é doutor em Filosofia. Com exclusividade ao Temas Preferidos, ele fala desse sentimento que toma conta da sociedade, seja a favor ou contra a mudança de quem conduz o Brasil. “Gostaria de acrescentar que uma possível saída seria o impedimento radical de qualquer forma de financiamento privado de campanha, como forma de eliminar as relações perversas entre os agentes públicos e o mercado; ou seja, enquanto os políticos forem financiados, em suas campanhas, por capitais privados, essa situação se repetirá sempre”, diz. Acompanhe os principais trechos da entrevista com o professor.

Temas Preferidos - Enquanto o país se mostra “dividido” com pessoas pró e contra governo, também ouvimos muitas pessoas afirmarem não acreditar em nenhuma corrente, com total descrédito em relação a moral dos governantes, sejam eles quais forem. Como você analisa essa questão em especial?

Henrique Keske - Isso mostra, de maneira geral, a falta de sintonia entre a classe política e a sociedade que esta diz representar, ou seja, evidencia-se que a sociedade não se sente mais devidamente representada pelos próprios políticos que elegeu. Primeiro por que o brasileiro não tem ainda muito enraizada a clara consciência do poder do voto em nossa incipiente democracia, de forma que ainda vota como a se livrar de uma obrigação incômoda, como se este fato, depois, não lhe trouxesse sérias e graves consequências. Segundo, por que a classe política se constitui como que a despeito das próprias reivindicações populares, de forma que opera como uma espécie de sistema à parte, no sentido de que, uma vez eleito, o político não mais se volta, efetivamente, para atender às reivindicações de quem o elegeu.

Por outro lado, aliado a uma espécie de analfabetismo político do brasileiro, no sentido de que nos recusamos a uma participação política mais efetiva, existe a circunstância do envolvimento da classe política em uma série de atos, não só imorais, como francamente ilícitos, de maneira que, hoje, 60% dos membros do Congresso Nacional, incluindo Câmara Federal e Senado, são réus em processos por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e participação em quaisquer outras formas de corrupção; ou seja, não inspiram confiança alguma.

TP - Como a expectativa do impeachment da presidente Dilma afeta a rotina das pessoas?

HK - Historicamente, o Estado, no Brasil, é o grande indutor do desenvolvimento econômico, estabelecendo uma espécie de associação, para este fim, com os empreendedores do mercado, que só agem em função de estímulos recebidos deste Estado. Trata-se, assim, de uma espécie de círculo vicioso, envolvendo a iniciativa privada, que só toma iniciativa tendo garantido, por parte deste Estado, pelo menos a minimização de possíveis prejuízos.

Esta situação se complexifica, na medida em que, no País, o regime presidencialista estabelece uma fusão entre o representante do Estado e do Governo. Portanto, a queda da Presidente implica em um momento de parada total, não só da máquina pública, em termos gerais de políticas administrativas, ou de enfoque macro e microeconômicos, como, igualmente, da própria economia que, assim, perde seu rumo. Por conta disso, os empresários deixam de investir, surge o retrocesso da economia e o consequente desemprego, em uma espécie de queda em dominó de tais indicadores produtivos. Falta-nos, enquanto povo, uma certa seriedade e responsabilidade diante de ato tão grave e dramático quanto o impedimento de um Presidente da República, legitimamente eleito por este mesmo povo, há muito pouco tempo atrás. As consequências são graves, afetando a todos, pelos impactos econômicos daí resultantes.

TP - A imprensa nacional noticia, entre outras afirmações, que o Brasil, diante da atual crise, perdeu a sua identidade. Você concorda com essa afirmação? Por quê?

HK - Não acredito que tenhamos perdido nossa identidade, até por que, só a perderíamos se já a tivéssemos e este é um de nossos maiores problemas: falta-nos, até agora, uma clara identidade nacional. Nesse sentido, sempre devemos nos referir a vários “Brasis”, com uma imensa diversidade cultural, tomado de desigualdades regionais e com fortes diferenças de desenvolvimento humano. Falta-nos, portanto, um verdadeiro “pacto nacional”, capaz de nos unir, a todos nós, em uma proposta de unidade nacional, enquanto país, povo e nação. Acredito assim que, ao contrário, esta crise está nos mostrando precisamente isto, ou seja, que carecemos desta identidade e que urge que a iniciemos a construir, a partir de bases que nós mesmos, enquanto povo, assim nos decidirmos estabelecer, a partir de nossos próprios valores, em uma espécie de rompimento com nossos processos coloniais históricos, que nos fazem, até o presente momento, importar modelos de fora, de outras sociedades, tentando imitá-las. Eis outra marca de nossa história; e é isto que precisamos mudar, enquanto antes.

TP - Podemos afirmar que a crise no Brasil já ultrapassou a questão política e é, inevitavelmente, uma crise moral e ética? Por quê?

HK - Sem dúvida, não podemos separar a dimensão política de uma dimensão ética e moral. Entretanto, em nossa história política, vivenciamos um processo de implantação do modelo europeu, mais precisamente, do Estado Português, ou seja, não dispomos de instituições políticas criadas e desenvolvidas por nós mesmos, em um movimento popular autêntico, capaz de criar valores e estabelecer valores como forma de nortear todas as ações, quer do Estado, quer dos governos. Ao contrário, vivenciamos a implantação de um modelo que desenvolveu um sistema de troca de favores que, agora, desembocou nessa exacerbação do processo de corrupção, sempre disfarçada pela expressão “jeitinho” brasileiro, que, em vários momentos, apresentamos como uma espécie de valor, mas que, efetivamente, não o é. Esse processo, portanto, de ajeitar as coisas, é o que caracteriza o costume, ou seja, a forma de agir do brasileiro, o que se faz, em todos os níveis, pessoais e coletivos, públicos e privados; de forma que vivemos uma corrupção sistêmica, estrutural e histórica, que afeta nossas instituições e quaisquer resultados que queiramos alcançar, de melhoria geral das condições de vida, quer foquemos a dimensão política, quer foquemos a dimensão econômica.

A lei que nos foi legada, historicamente, é a de obtermos vantagens pessoais, a quaisquer custos, beneficiando somente nossos interesses próprios, sem atenção à coisa pública e, aliás, considerando o bem público, não como bem de todos, mas como algo de ninguém e de onde podemos obter, a partir da coisa pública, o maior ganho possível. Portanto, teria que afirmar o contrário da pergunta, ou seja, que a crise política tornou evidente, na verdade, essa imensa crise moral e ética que vivenciamos, historicamente em nossa sociedade e cultura.

TP - Em meio a tantas dúvidas, medos e descrédito, as pessoas se perguntam: “onde vamos parar? ” O que você tem a dizer sobre isso, o que se pode aproveitar desse momento para que o brasileiro (re) encontre a crença no futuro e no seu trabalho?

Acredito que esta crise tem colocado nossas feridas sociais e políticas a descoberto, de maneira tão impactante, que não somos mais capazes de encobri-la, fazendo de conta que não nos diga respeito. Portanto, entendo que é o melhor momento de tomada de atitude, ou seja, só poderemos mudar algo se, efetivamente, nos conscientizarmos, criticamente, de que, assim, não nos é mais possível prosseguir.